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O sapateiro que cantava

Dom Pedro José Conti

Bispo de Macapá

Havia um sapateiro que estava sempre de bom humor. Era tão feliz que cantava de manhã até de noite. As crianças estavam sempre na janela da sua casa para escutá-lo e cantar juntos com ele. Na casa ao lado, morava um homem muito rico. Passava as noites contando o seu dinheiro e depois ia dormir de madrugada. Mas não conseguia, porque o sapateiro cantava. Certo dia, entendeu como podia fazê-lo parar. Convidou o sapateiro para almoçar na sua casa e lhe deu de presente uma pequena bolsa cheia de moedas de ouro. O pobre nunca tinha visto nada semelhante. Começou a contar as moedas. Depois, as contou e as contou de novo e as crianças na janela aguardando as suas canções. A partir daquele momento, o sapateiro ficou tão entretido com o dinheiro que se esqueceu o resto. Queria um lugar seguro para esconder as moedas. Primeiro, achou que o galinheiro era o lugar certo, depois as colocou no meio das cinzas da chaminé, por fim cavou um buraco no quintal. Não trabalhava e não cantava mais. As crianças pararam de visitá-lo. Ficou tão triste e infeliz, que resolveu recuperar as moedas e devolvê-las ao vizinho. Disse-lhe: “Por favor, pegue de volta o seu dinheiro. As preocupações me fizeram adoecer e perdi os meus amigos. Prefiro ser pobre e sapateiro como antes”. Voltou a ser feliz, a trabalhar e a cantar. E as crianças voltaram.

Depois do evangelho das tentações, que encontramos no primeiro domingo de Quaresma, no segundo, nos é proposta a página da transfiguração. Este ano, na versão de Lucas. Não é mera repetição. Por ter sido colocada entre dois anúncios da paixão, morte e ressurreição de Jesus, ela se torna uma introdução ao mistério-escândalo da cruz. Mistério não é um enigma insolúvel, é algo tão grande que supera o nosso limitado entendimento. Deus é incomparavelmente diferente de nós. Por isso, o “escândalo” vai junto, porque acreditar num Deus que ganha, quando perde, é sempre muito difícil. A questão é que o nosso Deus, Pai de Jesus Cristo, é o maior na força do amor, não no poder que esmaga os inimigos. Porque Deus não tem inimigos, só tem filhos, alguns dos quais, ou muitos, ainda não o conhecem bem e não o conseguem entender. Além da cruz, o difícil de entender do nosso Deus é o ter-se tornado um de nós. São Paulo nos ensina que ele se “esvaziou” do tudo que era, e que é, para se tornar o nada que somos nós.

A luminosidade da Transfiguração é indescritível, mas, mesmo assim, ainda é pouca e nem conseguimos imaginar a grandeza de Deus. No entanto, em Jesus, o Filho amado, ele se fez nada, assumiu a carne humana até a morte e ‘morte de cruz”. Nós humanos lamentamos quando perdemos alguma coisa, choramos e nos desesperamos se ficarmos mais pobres. Deus Pai deu seu Filho e o Filho deu tudo, entregou a sua própria vida. Isso funciona somente com a lógica do amor divino, nunca com os nossos critérios interesseiros e gananciosos. Somente abrindo o nosso coração àquilo que Jesus fez e ensinou, aos poucos, conseguimos, ainda que de longe, a nos deixar surpreender e envolver por esse amor tão grande. Nada de palavras inúteis, explicações confusas. Melhor ficar em silêncio, pensativos, como os três apóstolos descendo do monte.

O tempo da Quaresma é tempo de conversão, escuta da Palavra do Senhor e oração. No meio de tantas opiniões, conversas, slogans e gritos, nos faz bem voltar ao silêncio da nossa consciência, para nós mesmos, cada um pessoalmente, tomar conta do rumo da nossa própria vida. A quem queremos seguir enfim? Já deveríamos ter entendido que caminhos fáceis e cômodos são atraentes, mas não levam a lugar nenhum, ou, talvez à desigualdade e à injustiça. Muito mais difíceis são os caminhos da generosidade, da partilha e da fraternidade. Podemos ficar entretidos contando o nosso dinheiro, defendendo as nossas ideias, os bens e os privilégios ou refletir, no silêncio do coração, para poder seguir Jesus e cantar de novo o canto da liberdade e do amor. Como o sapateiro feliz. Simples e amigos das crianças porque delas é o Reino de Deus.

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